Tema
Mulher, corpo e sociedade: uma análise das danças do ventre e tribal na contemporaneidade
Objetivo
Analisar os contextos sociais em que a mulher esteve inserida, associando seus papeis na sociedade, as influências culturais de determinados períodos históricos e suas diferentes concepções de corpo, às danças como a dança do ventre e tribal, levantando problematizações diante destes entendimentos na contemporaneidade.
Justificativa
Diante das discussões de gênero e seus inúmeros levantamentos feitos no Laboratório de Corpo e Criação I, a possibilidade de reflexão das danças especificadas pôde gerar a construção de uma pesquisa teórico/prática através de embasamentos científicos que trazem noções de cultura e sociedade que focam o papel da mulher e suas transformações ao longo do tempo. Selecionar a dança do ventre e a dança tribal parece ser pertinente para estas reflexões, pois estereotipam bem os reflexos de alguns pensamentos, sobretudo contemporâneos, nas relações entre mulher, corpo e dança.
Metodologia
Apresentação de uma aula teórico/prática de cunho investigativo a partir da reflexão de específicos momentos históricos e os papeis sociais femininos particulares a estes períodos, associando suas relações entre corpo e dança às idéias de dominação (dominante/dominado) e a reverberação destes pensamentos nas danças do ventre e tribal.
Roteiro de proposições
1. Apresentação do tema;
2. Alongamento baseado na técnica do Yoga;
3. Mostra de vídeos de dança do ventre e de dança tribal (“Instruction bellydance with Jillina” e “Tribal Fusion bellydance with Rachel Brice”);
4. Divisão de três grupos para a criação de cenas a partir da observação da mostra dos vídeos e da leitura de algumas citações do livro “A sociedade de consumo” de Jean Baudrillard, do texto “De Vênus a Kate Moss: reflexões sobre corpo, beleza e relações de gênero” de Maria Mota (UFC) e do texto “Mulher, corpo e sociedade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade” de Geoges Boris (UFC) e Mirella Cesídio (UNIFOR);
• Grupo 1 – Execução de uma cena de modo que a idéia do poder do corpo feminino no período matriarcal esteja inserida (corpo como poder divino).
• Grupo 2 – Execução de uma cena, com o intuito de expor a repressão da mulher e conseqüentemente do seu corpo, retratando a submissão à dominação e exploração sexual masculina (corpo como pecado).
• Grupo 3 – Execução de uma cena de maneira que a redescoberta do corpo da mulher esteja ligada diretamente ao consumo do próprio corpo (corpo como objeto de consumo).
5. Proposta de problematização diante da justificativa das escolhas estéticas das cenas;
• A Dança do Ventre na contemporaneidade pode fornecer a noção da mulher como objeto sexual? Por quê?
• O surgimento da Dança Tribal tem a ver com o desejo de apresentar a dança do ventre sem alimentar tanto aquela imagem de consumo da mulher. Esta imagem de consumo foi realmente afastada? Por quê?
• Que tipo de significação o corpo traz diante destas danças?
Mulher, corpo e dança: liberdade e poder no período matriarcal
Exploração sexual da mulher e negação do corpo feminino
Redescoberta do corpo: mulher como objeto de consumo
Introduzindo
O corpo da mulher é um veículo privilegiado de beleza, sexualidade e narcisismo dirigido. Foi vista durante muito tempo como sexualidade prejudicial numa condenação moral/social que se apóia numa servidão social.
As relações entre corpo, mulher e dança podem ser vistas de diferentes formas em diferentes períodos históricos e sociedades. Pode-se pontuar três configurações válidas às discussões de gênero e sexualidade sobre a dança do ventre e a tribal: a de poder e liberdade dos corpos femininos no período matriarcal; a exploração sexual da mulher e negação do corpo feminino onde a dança e obviamente o corpo eram vistos como produtos diabolizados; e a redescoberta feminina do próprio corpo na sua adaptabilidade à sociedade de consumo.
Sabe-se que estas pontuações fazem parte de um caldeirão de acontecimentos onde inúmeras formas de relação entre mulher, corpo e sociedade foram constatadas, sendo elas não apenas compreendidas num ponto de vista cronologicamente linear, mas como escolhas específicas para o desenvolvimento deste laboratório.
Alguns levantamentos
Registros antigos apresentam o período pré-histórico (idade da Pedra Lascada) como o período em que a representação da força feminina estava diretamente ligada aos cultos matriarcais, onde a mulher era divinizada pela capacidade de gerar uma nova vida e perpetuar a espécie.
Algumas das antigas civilizações do Oriente Médio utilizavam a dança como uma forma especial de cultuar seus deuses. Observando as mulheres que davam a luz após um período de nove meses de gestação, as pessoas da época chegaram acreditavam que as mulheres grávidas estavam impregnadas, ou possuídas, pela essência divina sendo capazes de produzir uma nova vida.
A relação entre a facilidade de entrar em transe e as habilidades de dança de algumas mulheres afirmava esta ligação. De acordo com as crenças, a Grande Mãe era quem alimentava a terra tornando-a fértil para a lavoura. Nos rituais em sua homenagem sacerdotisas expunham seus ventres sagrados fazendo-os dançar, vibrar e ondular.
Percebe-se que a relação entre a dança e os corpos femininos neste período era produzida a partir da centralização do poder dada pela capacidade de reprodução e crença da divinização dos ventres responsáveis por esta ação. Desta forma as mulheres estavam à frente da sociedade e sua dança representava uma expressão de domínio perante os corpos masculinos.
No final do período neolítico, em muitas regiões, o culto da Grande-deusa foi enfraquecendo. A passagem do politeísmo para o monoteísmo coincide com o início dos preconceitos contra as dançarinas, afinal de contas elas representavam um culto antigo de uma sociedade baseada numa cultura arcaica e que já não interessava mais. A transformação da sociedade trouxe a mulher para dentro de casa e os homens descobriram que ela não era capaz de gerar um filho sozinha. De deusa, a mulher passou a ser propriedade: primeiro do pai e depois do marido. Quando gerava um filho era apenas para dar continuidade a linhagem masculina.
Na Grécia clássica a beleza era uma qualidade do corpo masculino, mas do homem rico, grego e másculo. Esse corpo era exposto nos ginásios sendo a sua nudez uma forma nobre de exaltar toda a grandeza física e beleza dos homens. Essa nudez não era permitida para as mulheres, que despossuídas de poderes públicos, eram confinadas no espaço de casa. Essa tendência estética centrada no masculino vai predominar até a queda do Império Romano quando a figura feminina e seus atributos serão então diabolizados, especialmente sua beleza física, ligada à sedução e ao prazer.
O racionalismo moderno estabeleceu as bases para a emergência da mulher como o “belo sexo”, com as representações e papeis femininos que organizam as formas modernas de subordinação e desigualdade das mulheres. A instituição da mulher como o belo sexo ocorreu no contexto de uma cultura baseada nas capacidades humanas como o trabalho e a razão, criadores de riquezas, poder e saber, restituindo as coisas do mundo como criações humanas.
A beleza física se transfigura e assume um sentido positivo na sociedade, manifestando-se como qualidade das mulheres, pois aos homens cabia o trabalho e a razão, a inteligência e a força. Essa beleza feminina continuou idealizada para o deleite e prazer dos homens. O desbaratamento da diabolização da imagem feminina ocorreu na passagem para um conceito de beleza divinizada, em que o belo era confundido com a face de Deus, e era posto como um atributo das mulheres. Mas esse processo teve seu custo.
A concepção estética filosófica do belo como feminino, extraiu das mulheres a capacidade de raciocínio e pensamento, cabendo-lhes apenas a capacidade de sentir. Assim a mulher emerge na sociedade de mercado como dona de casa e consumidora, sensível e submissa, bela e burra. Beleza essa centrada não mais na ”face de Deus”,
mas na face material das riquezas e bens que estruturam a nova sociedade.
Corpo erótico e corpo de consumo
Assim como a mulher e o corpo compartilham semelhante servidão e relegação ao longo da história ocidental, a “emancipação” da mulher e a “libertação” do corpo estão coerente e historicamente conectadas, porém não foi eliminada a confusão ideológica entre a mulher e a sexualidade.
Do Iluminismo à sociedade de consumo, a beleza feminina passou por uma atribuição relacionada à conduta moral, para quem a mulher ao longo desses séculos, teve seu corpo sujeito às prescrições sociais, que transformaram sua imagem conforme os valores dos grupos sociais aos quais pertencia. Esta beleza feminina tem sido produzida com sacrifícios, relacionando-se a adequações, modificações e montagens de uma figura (irreal) para a sedução. Significando a criação de um corpo, que deve
personificar o belo, para as emoções e prazeres do desejo masculino.
A negação do corpo e a exploração sexual da mulher encontram-se situados sob o mesmo signo, pretendendo este que toda a classe explorada e, conseqüentemente ameaçadora, adquira uma definição sexual.
Tudo aquilo em que cujo nome se realiza a emancipação institui-se em sistema de valores de “tutela”. Valores irresponsáveis que orientam ao mesmo tempo valores de condutas de consumo e de relegação social. De tal modo a exaltação e o excesso de honra impedem a responsabilidade econômica e social real. (BAUDRILLARD, 1991, p.146)
No mundo ocidental, por vários motivos, a dança do ventre ficou conhecida como uma arte ligada à sedução e à sexualidade. Isso pode ter várias origens: desde os marinheiros britânicos que chegavam a Port Said no Egito por volta do século XIX e iam aos cabarés onde assistiam as exóticas apresentações, até as apresentações de Mata Hari que encantaram e assustaram toda a Europa no começo do século XX. Há também relatos de que algumas mulheres usavam a dança como forma de sedução em troca de favores pessoais.
As mulheres, os jovens e o corpo, cuja situação crítica após anos de servidão e de esquecimento vêem-se integrados e reconstruídos como o “mito da emancipação”. O círculo vicioso da emancipação dirigida que se reconstrói para a mulher é espantoso, pois através do conflito entre a mulher e a libertação sexual consegue-se
neutralizar ambas de forma recíproca.
Um dos mecanismos fundamentais do consumo é a automatização formal de grupos, de classes e de castas (e do indivíduo) a partir de e graças à automatização formal de sistemas de signos e de funções. (BAUDRILLARD, 1991, p.146)
Como já foi dito a pouco, pensar na dança do ventre como forma de sedução e erotização da mulher na contemporaneidade não é algo admirável, principalmente se estiver sendo vista por olhares ocidentais, logo, na cultura árabe, a dança não está relacionada a este princípio. É uma manifestação cultural onde a fertilização dos ventres parte da dança em que as mulheres aprendem desde crianças.
Segundo Baudrillard, existem várias discussões sobre a explosão sexual e o crescimento do erotismo. Juntamente com a sexualidade, a sociedade de consumo aparece, determinando toda a dominação das comunicações em massa. Tudo que se apresenta para ser visto e ouvido assume uma vibração sexual, porém é óbvio que ao mesmo tempo é a sexualidade que se propõe ao consumo.
A dança tribal desde sua formação viu-se diante da evidência de sua mesclagem. É uma modalidade de dança que tendo como base a dança do ventre, funde arquétipos, conceitos e movimentos de danças étnicas das mais variadas regiões, como o Flamenco, a Dança Indiana e danças folclóricas de diversas partes do Oriente, desde as tradicionais manifestações folclóricas já bem conhecidas pelas bailarinas de dança do ventre às danças tribais da África Central, chegando até mesmo às longínquas tradições das populações islâmicas do Tajiquistão. É relativamente recente no mundo da dança, mas bebe na fonte de diversas culturas antigas e mistura tudo numa alquimia de tom contemporâneo.
Surge numa tentativa de recriar o que poderia ter acontecido, mas havia diferentes tribos, principalmente nômades, e não há qualquer documentação (não há fotografias ou pinturas, nem mesmo escritos) com o que realmente existiu. Provavelmente as mulheres de muitas destas tribos foram influenciadas por outras culturas que
entraram em contato com elas durante as suas viagens nômades.
A idéia de fusão pode ser vista como um processo de tradução cultural seguido da assimilação de informações que são semelhantes entre as danças envolvidas. A tradução das danças para as formas familiares é acompanhada de um conjunto de dispositivos de imitação. Com o entendimento da possibilidade de “empréstimos” e “adoções” de signos, o processo de adaptação pode ser considerado como um movimento duplo de des-contextualização e re-contextualização, retirando um item de seu local original e modificando-o de forma que se encaixe em seu novo ambiente.
Como todas as culturas, existem locais específicos que são favoráveis à troca cultural, especialmente as metrópoles e as fronteiras.
Sempre que ocorre uma troca cultural, se pode falar metaforicamente de “zona de comércio”. Um local importante de troca é a metrópole, local tanto de comércio quanto de cultura, onde pessoas de diferentes origens se encontram e interagem. Nova York, Lagos, Londres, Los Angeles, Bombaim e São Paulo são exemplos contemporâneos evidentes. (BURKE, 2006, p. 70)
Todo este comércio de informações trouxe à dança um caráter de consumo por ter sido difundida através dos meios de comunicação em massa. A propagação da dança através das produções audiovisuais e sua divulgação nos meios virtuais de comunicação (internet) fizeram parte deste processo de comercialização.
Aquelas mulheres que antes “temiam” a execução de uma dança com rotulação sexual como a dança do ventre viram-se diante da alternativa de tentar recriar uma dança onde seu corpo pudesse expressar seus prazeres pessoais, não voltados para uma dominação masculina. A mulher que era escravizada pelo sexo encontra-se na sociedade democrática moderna libertada perante o sexo, mas na medida em que se libertava confundia-se cada vez mais com o próprio corpo.
A tentativa de afastamento do julgamento erótico, antes significativa no surgimento da dança tribal, foi substituída pela “febre” comercial trazida por esta modalidade no universo da dança. Virou “moda” e por mais que houvesse o anseio pelo afugentamento do caráter sexual, a vivência das bailarinas em sociedades capitalistas possibilitou sua adaptabilidade neste meio.
A definição histórica do consumo é a movimentação dos sinais com base na recusa das coisas e do real. O mais belo objeto de consumo é o corpo, corpo aquele visto como capital e como feitiço (ou objeto de consumo) que deixa de ser “carne” (religião) e
força de trabalho (indústria) e passa a ser beleza e erotismo.
A beleza se tornou para a mulher uma necessidade absoluta e religiosa, e juntamente com a sexualidade, orienta a redescoberta e o consumo do corpo. A redescoberta do corpo num ponto de vista auto-reflexivo transformou a dança do ventre no mundo ocidental, sobre influência da globalização e erotização feminina, numa dança onde a mulher assume o papel de objeto sexual masculino, dominante e submissa (a arte da dança pode ser compreendida de outra forma caso os sujeitos da ação, ou seja, corpo(s) que dança(m) e corpo(s) que aprecia(m) permaneçam imersos na dança sem levantar pensamentos erotizados diante da mesma) e a dança tribal, na experiência de rejeitar este enfoque, caiu nas “garras” do consumismo.
Nem tão sagrada, nem tão profana, as danças do ventre e tribal são hoje técnicas desenvolvidas para o corpo feminino.
Referências
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa, 1991.
BENCARDINI, Patrícia. Dança do Ventre: Ciência e Arte. São Paulo. Texto Novo, 2002.
BORIS, George & CESÍDIO, Mirella. (2007). “Mulher, corpo e sociedade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade”. Disponível em:
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. (L. S. Mendes, Trad.) Unisinos, 2006.
GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MOTA, Maria Dolores de B. (2007). “De Vênus a Kate Moss: reflexões sobre corpo, beleza e relações de gênero”. Disponível em:
PHOENIX, Holly. (2008) “History of Tribal Fusion Belly Dance”. Disponível em
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